Ontem e Hoje

A T E N Ç Ã O: ESTE BLOG É ESCRITO POR MIM, ISMAEL CIRILO, 87 ANOS. PODEM ME CHAMAR DE SOIÉ. (ONTEM E HOJE está sendo publicado na conta de meu filho Cláudio, por isso o perfil dele é que está aparecendo. Coisas do Blogger Beta!).

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Alguém que sempre quer saber mais: inquieto, crítico, curioso.

domingo, dezembro 31, 2006

Na Estrada


Amigos e amigas: li esta crônica no jornal O Paroquiano, daqui de Nova Era. Compartilho com vocês. Feliz Ano Novo para todos.
Ver a visão...
Pediu para sentar ao meu lado. “Queria ver a visão”, entendi que queria ver a paisagem que se espalhava deslumbrante á nossa volta. Um infinito de árvores, e verdes como na roça. Ele preferiu a roça à rua. Queria viver na roça, mas não podia.
Tentei continuar a leitura, mas insistiu tanto na conversa que desisti e me rendi às suas palavras. Queria conversar, estava claro. Pelo menos ser ouvido. E, nesses momentos, esquecer a solidão em que nos encontrávamos para descobrir o mundo fabuloso de histórias e idéias de pessoas comuns.

Era conhecido em sua cidade, fora candidato nas últimas eleições e, apesar de não ser eleito, via na política um futuro certo. Munido de frases de efeito e temas pouco originais. Seguia fazendo propaganda divulgando suas intenções. E para continuar na campanha precisou de ajuda. Ai começou toda a sua adversidade.
Rua Dália, bairro com nome de jardim. Uma pequena casa, uma família. O candidato a vereador e seu fiel escudeiro motorista, resolvedor de problemas, destruidor de lares. Freqüentava sua casa e até abria geladeira. (sinal de máxima intimidade que pode haver entre uma visita e seus anfitriões). Era um verdadeiro amigo, sabia de tudo que acontecia naquela família, principalmente com a mulher. E a intimidade era tanta que se tornou amigo da esposa.
Um dia ela começou a brigar a toa e do nada disse que queria ir embora. Marido e filhas não compreenderam. A mulher enlouquecera? Queria partir, Estava cansada, etc. e tal. Esses discursos femininos que conhecemos muito bem.
Ah, mulheres e nossas histórias...
Veio a separação. Nada no papel. Ela se foi. Ele sofreu, e como sofreu!
Dias depois a notícia soube que mulher estava morando com o amigo, o fiel escudeiro e motorista que abria a geladeira e sabia dos problemas da família.
Rua Margarida, uma casa pequena, dois amantes felizes. Dois traidores. Dois destruidores de lares e de carreira política. Uma vida destruída.
Duplamente traído, aquele homem que agora me contava sua história com visível serenidade, confessou o ódio que sentiu. Tinha vontade de matá-los. Jurou por DEUS que queria matá-los. Deixou a Igreja Evangélica. Começou a beber. A cachaça é alívio da alma, a solução para todas as dores.
O pior é que ele ainda a amava, meu DEUS, como a amava, dava pra ver em seus olhos à vontade de ver de novo aquela mulher; velha, feia, cheia de doenças e dores, mas ele a queria assim mesmo. Ainda espera pelo dia em que ela virá lhe pedir perdão, querendo voltar para casa que abandonou por uma loucura, por uma paixão qualquer.
O que ele faria? Perguntei, o silêncio aumentara o seu talento de compositor.
Por alguns longos minutos ouvi declamação de letras de músicas sertanejas compostas por ele mesmo, o marido traído. Como a dor de cotovelo é a principal fonte de inspiração de canções românticas, posso dizer que inspirado ele - o marido traído - estava! E acreditava tanto em si e em suas dores que confessou o objetivo de vender suas letras para uma dupla de cantores famosos. Dizia que seria um sucesso, que logo suas músicas cairiam no gosto popular, afinal de contas ele falava de coisas que muitas pessoas sentiam. Ele falava de amor.

Pensava também gravar um CD. Sabia que não era muito fácil; precisava de algum dinheiro para contratar músicos. Mas o faria. Recitou mais alguns versos, despertando risos dos passageiros mais próximos.
Riam da ingenuidade? Da facilidade daquele homem transformar sua tristeza em Sonho? Com seus sessenta e poucos anos, aquele moço que queria viver na roça trazia um infinito de desilusões e esperanças.
Acreditava que seria eleito e a que mulher que ele tanto amava lhe pediria para voltar. E sonhava ouvir suas canções tocando em todas as rádios. Perdera fé na justiça divina, mas sabia que isso não ficaria assim. Ah, isso não.
Deixei-o sozinho seguindo a viagem.
Segui sozinha o meu destino. Sabia que aqueles casos me renderiam uma história.
Quantas poesias há entre a Rua Dália e Margarida, quanta beleza existe naquela dor! Pouco importa se vencerá na próxima eleição, se a traição será vingada, tampouco se as músicas serão sucessos. Pouco importa o nome, a cara, a cidade onde mora.
É um ser humano, como eu, que precisava conversar. Eu nada tinha a ver com aquilo tudo, mas a vida me deu a história de Zé, conhecido como Baiano. Fez-me saber da capacidade humana de sonhar, apesar das desilusões, das dores de pessoas comuns que se tornam heróis de suas próprias aventuras.
Ele me ofereceu um pouco de sua experiência, e eu, um pouco de minha paciência.
Era tudo o que podíamos trocar, e depois disso ficamos vazios: ele, por expor seus sentimentos. Eu, por me calar e ouvir.
E o vazio é o estado necessário da alma, silêncio inicial que antecede a renovação, momento de começar de novo.
O ônibus fez a curva na estrada, distanciando-se, levando com ele centenas de histórias, casos de amor, traições e desejos.
Histórias guardadas no silêncio da viagem. Sonhos jogados nas paisagens das estradas. Corações cheios de vontade. Almas precisando do vazio.